
Por Valério Fabris
Até as feiras livres estão sendo levadas para dentro dos condomínios fechados. Estima-se que 200 condomínios da Grande São Paulo semanalmente tenham feiras montadas em meio às sua casas ou torres de apartamentos cercadas por muros. São as classes de renda mais alta que, cada vez mais, conversam apenas entre si. As crianças são expostas ao risco de se tornarem deficientes sociais, sem a capacidade de interagir e conviver com a diversidade humana. Os adultos encastelaram-se em suas redomas narcísicas, achando feio o que não é espelho.
Tudo o que se pode retirar da rua está sendo confinado no reduto apartado dos condomínios: bar, restaurante, food truck, pet shop, lavagem e polimento de carro, salão de beleza, academia de ginástica, curso de idiomas. É um fenômeno observado nos países pobres e emergentes da América Latina, África e Ásia, em que luxuosos enclaves residenciais contam com campos de golfe, lagos, quadras de tênis. Dispõem de policiamento privado em suas portarias e áreas internas.
Nos Estados Unidos, muitas cidades têm áreas suburbanas, exclusivamente residências, em campo aberto e sem muros. Os próprios americanos, no entanto, estão revendo, desde 1980, o modelo das cidades espalhadas e rodoviarizadas. Nelas, mora-se em um subúrbio, trabalha-se na região central. As compras são feitas no vasto hipermercado que se ergueu em uma remota geografia. As famílias de todos os extratos sociais são dependentes do automóvel, “night and day”.
São poucas as cidades dos Estados Unidos que misturam as funções urbanas de moradia, lazer, trabalho, educação escolar e consumo. O exemplo máximo de mistura funcional é Nova York. Os americanos passaram a sonhar com a mescla comum a qualquer cidade europeia. Foi assim que entre eles surgiu, há quase quarenta anos, o movimento denominado New Urbanism. O seu objetivo é misturar os usos, aproximando a moradia em relação ao trabalho, à escola, ao comércio, aos locais em que se oferecem os serviços públicos e o lazer. A síntese do movimento é a “walkable city” (cidade caminhável).
O Brasil está na contramão. Suas cidades continuam se espraiando, por conta de fenômenos como o dos enclausurados e ensimesmados condomínios residenciais. Ao mesmo tempo, os conjuntos habitacionais de baixa renda são levados para a periferia das periferias. O vaivém de carros e ônibus, nas longas distâncias entre as bordas dos municípios até às regiões centrais, produz inarredáveis engarrafamentos cotidianos.
“Uma cidade verdadeiramente avançada é aquela em que os ricos usam transporte público, caminham e vão a parques. As cidades atrasadas são as que os ricos usam helicópteros, vão a clubes fechados, a shoppings, moram em condomínio”, diz o renomado gestor urbano Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá. O seu ponto de vista é o mesmo do brasileiro Paulo Mendes da Rocha ou do chileno Alejandro Aravena. Ambos foram agraciados com o prêmio máximo da arquitetura mundial, o Pritzker.
É impossível que se encontre algum urbanista favorável à cidade alargada, de baixa densidade, pulverizada a perder de vista. Seria o mesmo que um cardiologista considerar bom para a saúde o sedentarismo, o sobrepeso e o consumo excessivo de álcool. Mas há milhares vereadores e prefeitos, pelo país afora, que irredutivelmente permanecem na vanguarda do atraso, aprofundando a caótica desigualdade e o desastroso subdesenvolvimento urbano do país.
Entre os poucos prefeitos que enfrentaram as históricas resistências à proposta do urbanismo da escala humana está o prefeito paulistano Fernando Haddad. De forma obstinada e ousada, conseguiu quebrar o exclusivismo residencial de bairros como o Sumarezinho, Alto de Pinheiros, Jardim Marajoara, Jardim da Saúde e Planalto Paulista. O presidente executivo da Abrasel, Paulo Solmucci, esteve com Haddad em junho de 2015, expressando o apoio da entidade às linhas gerais da sua proposta para a Lei de Zoneamento, que acabou sendo aprovada em 15 de fevereiro deste ano.
Como disse o urbanista dinamarquês Jan Gehl, em entrevista à Folha de S. Paulo, é difícil entender por que os moradores da região dos Jardins se opõem a lojas e ao uso comercial em seus bairros. “Uma das orientações de qualquer planejador urbano é misturar os usos. Se você envelhece, se você tem filhos, quer ter comércio por perto que faça a vida mais fácil e sem carro. Não conheço essas pessoas, mas certamente elas passam férias em cidades pelo mundo onde há prédios residenciais e de escritórios com lojas e restaurantes no térreo. Duvido que passem férias em algum lugar parecido a um subúrbio.”